gostei muito da discussão que se estabeleceu na sequência do post sobre impacto familiar, não foi por sadismo, foi porque acho que nos faz bem reflectirmos sobre estes aspectos da vivência com uma criança portadora de deficiência. volto hoje novamente ao trabalho que deu origem ao post, desta vez com excertos completamente centrados nos irmãos. para reflectir, contestar e aprender. mantive a terminologia que a autora empregou.
"Na literatura, está descrito em inúmeros estudos o efeito negativo da existência de um filho deficiente na saúde mental e na adaptação psicológica dos irmãos. As investigações nesta área têm sido complexificadas pelas grandes alterações no estilo de vida da criança deficiente, resultantes, mordialmente da desinstitucionalização ao longo das últimas décadas. Deste modo, as crianças deficientes mais provavelmente crescem no contexto familiar, pelo menos até à sua adolescência.
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Nos anos 70 e 80, notou-se um acréscimo do interesse no impacto da criança deficiente nos seus irmãos, bem como na intervenção psicológica com estes irmãos. Lobato (1985) estabeleceu um Programa de Intervenção para crianças em idade pré-escolar, entre os 3 anos e 9 meses e os 7 anos, referindo que os irmãos de crianças deficientes desta faixa etária podiam ser particularmente vulneráveis a sentimentos de confusão e isolamento. O seu principal objectivo era fornecer aos irmãos desta idade informação factual, de forma a compreender as várias deficiências desenvolvimentais, enquanto fortaleciam a sua capacidade de reconhecer as competências e características positivas de si mesmos, dos seus irmãos deficientes e de outros membros da família. (...) Como resultado, verificaram que todas as crianças passaram a ser mais precisas na definição de deficiências específicas e nas referências às deficiências em geral. Além disso, foram notadas mudanças positivas no conteúdo das afirmações relativas a si próprios e aos elementos da família, incluindo ao irmão deficiente. Em várias alturas do Programa, os pais das crianças descreveram situações nas quais os filhos começaram a falar abertamente sobre a deficiência dos irmãos de outras crianças do grupo. Os pais referiram que esta iniciativa possibilitou grandes discussões entre eles e os filhos sobre os seus próprios casos familiares, e todos sentiram alívio e satisfação em ser capazes de ter tais conversas com os seus filhos.
Seligrnan (1983) identificou os seguintes factores que pareciam ter o potencial de contribuir para a sua inadaptação: ansiedade em relação à deficiência, falta de comunicação na família sobre a condição da criança e atitudes e respostas parentais negativas para com esta. O autor refere que estas crianças podem ser pressionadas a assumir papéis parentais antes de serem capazes de o fazer e que a responsabilidade excessiva pela criança deficiente pode levar a ressentimentos, culpa e perturbação psicológica posterior. Este stress é mais elevado nas famílias com baixo estatuto sócio-económico, que têm que confiar nos recursos internos à família; em famílias menores, onde os irmãos têm que assumir uma partilha maior das responsabilidades e nas irmãs, a quem é dada maior responsabilidade de tratar da criança deficiente. Podem também ser sobrecarregados com aspirações parentais excessivas para compensar o desapontamento e a frustração de ter um filho deficiente.
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Embora a maior parte dos estudos clínicos enfatize o impacto negativo da doença ou deficiência nos irmãos, também têm sido referidos alguns efeitos positivos, não se podendo, na opinião de alguns autores, assumir incondicionalmente a presença de problemas de adaptação entre os irmãos de crianças deficientes.
Lavigne e Ryan (1979) referem um estudo de Hunt (1973), no qual verificou que alguns irmãos respondiam favoravelmente às responsabilidades acrescidas que lhes eram dadas, e que eram mais compreensivos com as crianças com problemas específicos.
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Siemon (1984) refere haver uma tendência na investigação clínica para enfatizar as dificuldades e os efeitos prejudiciais da vivência com uma criança com necessidades especiais. Segundo esta autora, ela pode também ocasionar força, sensibilidade e capacidade para ver os acontecimentos do ponto de vista do outro, e afirma que há muitos estudos que referem uma maior maturidade e responsabilidade, um aumento do altruísmo e da tolerância, e uma forte orientação para interesses humanitários.
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Kazak e Clark (1986) avaliaram o auto-conceito de irmãos de crianças com Spina Bífida, de 8 e 9 anos, e verificaram não haver diferenças significativas entre estes e os sujeitos do grupo controlo. As autoras afirmam que estes resultados confirmam um estudo prévio de Breslau, Weitzman e Messenger (1981), com 239 famílias de crianças portadoras de Paralisia Cerebral, Fibrose Quística, Mielodisplasia e Multideficiência, no qual os autores verificaram não haver diferenças significativas entre as pontuações globais dos irmãos, entre os 6 e os 18 anos, e as de um grupo controlo.
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Fisman e Wolf (1991) referem que, apesar dos técnicos que trabalham com crianças cronicamente doentes ou deficientes e com as suas famílias desde sempre suspeitarem que os seus irmãos estão em risco de desenvolver problemas emocionais, a literatura sobre os efeitos de uma criança deficiente na fratria é inconclusiva e inconsistente.
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(Num) estudo realizado no nosso país, numa perspectiva sociológica, com irmãos adolescentes de crianças deficientes, das cidades de Faro, Lisboa e Porto, Pinto avaliou a sua capacidade de interiorizar e desenvolver empatia, responsabilidade social, compaixão e outros antecedentes motivacionais de ajuda altruísta, através de um questionário elaborado pela autora. A sua hipótese era de que estes irmãos, quando comparados com um grupo de irmãos de crianças sem deficiência, apresentariam maior intensidade de atitudes sociais positivas, devido à sua experiência e aprendizagem prévias de prestação de cuidados ao irmão deficiente e de responsabilidade pelas tarefas domésticas. Verificou que o facto de crescer numa família em que existe uma criança com necessidades especiais pode constituir uma oportunidade para aprender e desenvolver atitudes sociais positivas nos irmãos, tais como empenhamento em problemas e questões sociais.
Toma-se evidente, com esta breve perspectiva dos principais estudos e pesquisas que se debruçaram sobre a adaptação psicológica dos irmãos à doença crónica ou à deficiência, que as conclusões são muito diversificados. Os resultados dos estudos sobre este tema têm sido, assim, inconsistentes, verificando-se desde um efeito desprezível até uma incidência significativa de problemas, ou pelo contrário, efeitos positivos no desenvolvimento.
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Diversos autores se debruçaram sobre um aspecto específico da reacção destas crianças a um irmão deficiente, que consiste nos sentimentos que geralmente experimentam. Podem senti-los em determinado momento da sua vida, ou podem estas emoções coexistir no tempo, substituindo-se umas às outras consoante os períodos e as circunstâncias externas. Internamente a cada estrutura familiar, cada criança necessita de ser especial, e procura a segurança de um lugar único junto dos seus pais. Exteriormente à família, as crianças querem ser como os seus pares, e as diferenças entre a sua situação e a dos seus pares assumem proporções consideráveis. Ter um irmão com necessidades especiais toma estes desejos mais difíceis de obter. Podem sentir-se estigmatizados de tal forma que a sua própria normalidade fica comprometida. No seio da família, estas necessidades especiais conferem as vantagens de atenção e de privilégios extra. Os irmãos debatem-se com o medo de se sentirem com vergonha e embaraçados, ciumentos e ressentidos, apesar de também amarem o seu irmão ou irmã deficiente.
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Os pais geralmente têm de dispender muito mais tempo com a criança deficiente do que com os irmãos saudáveis, no que refere às consultas médicas, tratamentos, e actividades de vida diária. É natural os irmãos se ressentirem por não terem a mesma atenção e sentirem ciúme, e é particularmente verdade no caso dos irmãos pequenos que não têm capacidade para perceber as necessidades do irmão deficiente ou doente. Nos mais velhos, pode haver ressentimento por acharem que os seus sucessos são ignorados ou dados como garantidos, enquanto que qualquer pequeno sucesso do irmão deficiente é alvo de grande alegria e elogios. Desta forma, estas crianças podem não desenvolver uma auto-estima positiva a partir do seu desempenho.
O ressentimento também é referido por Skrtic, Summers, Brotherson e Turnbull (1984), que afirmam que, à medida que os irmãos crescem, a responsabilidade de apoio financeiro do elemento deficiente da família pode ser transferido para os irmãos saudáveis. A família pode ter um acordo tácito ou explícito de que a responsabilidade pelos cuidados do irmão passe para a geração dos mais novos. Nalguns casos, os irmãos podem-se ressentir ou resistir relativamente à responsabilidade de tratar de um irmão adulto deficiente.
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Nos irmãos de crianças com deficiência, Frank (1996) também refere a ocorrência de tristeza por não terem com quem brincar ou partilhar os seus pensamentos, de ressentimento pela atenção que a criança deficiente recebe ou pelo modo como ela interfere com as suas actividades, de embaraço pelo modo como o seu irmão ou irmã parece, olha, ou se comporta, de medo quando está doente ou vai ao hospital e de raiva por o seu irmão não poder fazer o que ele próprio faz, ter sempre os seus pais do seu lado, ou impedir que o irmão saudável realize algumas actividades.
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No seu manual dirigido a irmãos de crianças deficientes, Meyer e Vadasy (1996) apontam as emoções de raiva, culpa, cisme, embaraço, preocupação e solidão como as mais frequentes nos irmãos de crianças e jovens com deficiência, a par de envolvimento excessivo, altruísmo, compreensão, orgulho no irmão e maturidade.
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Em grupos de apoio aos irmãos de crianças deficientes, implementados por Pearson e Sternberg (1986), estes autores verificaram que os temas mais referidos eram a raiva, pela atenção excessiva que o irmão recebia dos pais; o ressentimento pelo modo como os estranhos olhavam para o seu irmão; o desagrado pelas responsabilidades de cuidar, tratar e brincar com o irmão deficiente, quando preferiam estar a fazer outra coisa, e também a raiva de pertencer a uma família considerada diferente. O proteccionismo e um sentimento de responsabilidade pela criança deficiente, sobretudo nos irmãos mais velhos, também eram frequentes nestes grupos de apoio.
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Muitos pais referem preocupação sobre quando e como informar as outras crianças da família. Esta questão está muito dependente do seu nível de compreensão, mas muitos dos pais apontam a idade dos 9 ou 10 anos como a idade em que há capacidade de compreensão do problema de uma forma madura. No entanto, se for de um modo simplificado, é possível fazer com que crianças mais novas entendam que a criança com atraso é alguém diferente e necessita de atenção especial. Embora não haja uma receita geral para lhes contar, o conceito de lentidão deve ser comunicado logo que o sejam capazes de entender. A falta de comunicação numa família relativamente à condição deficiente de uma criança pode contribuir para a solidão que os irmãos sem problemas vão sentir. Podem sentir que certos tópicos são proibidos, criando um afastamento com quem se deviam sentir muito próximos . Este autor refere ainda que as decisões relativas à deficiência são frequentemente tomadas sem discussão ou explicação prévias aos irmãos que podem ser afectados por certos actos.
França (1994) chama a atenção sobre a necessidade de a informação sobre a deficiência ser também prestada à fratria; esta é dada exclusivamente aos pais, ficando os outros membros da família excluídos de dados importantes relativos a um dos seus membros. Esta autora refere que a informação deve ser dada o mais cedo possível aos irmãos mais velhos, e logo que o diagnóstico da deficiência é feito, quer sobre a sua natureza, quer sobre as suas causas. Os irmãos mais novos devem também ser informados quando se começarem a aperceber das diferenças.
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Meyer e Vadasy (1996) referem que os irmãos de crianças com deficiência têm uma necessidade permanente de receber informação relativa às dificuldades dos seus irmãos. Os irmãos mais pequenos precisam de saber que não foram eles a causar a deficiência do irmão ou irmã, e que não a podem "apanhar". Os de idade escolar necessitam de informação para compreender as dificuldades dos seus irmãos e para satisfazer a sua própria curiosidade. Também precisam de saber responder às perguntas dos seus colegas da escola, que de certeza vão perguntar o que se passa com eles. Os adolescentes, que poderão pensar na sua vida futura, têm que saber quais os planos que a família tem para o filho deficiente. Os irmãos na idade adulta, que provavelmente terão um papel importante na vida do seu irmão deficiente, necessitam de informação relativa à legislação em vigor referente a alternativas de trabalho e de residência, e à existência de serviços de apoio ao deficiente.
Lobato chama a atenção para as dificuldades de compreensão de informação das crianças pequenas: antes dos 5 anos, as crianças são egocêntricas na sua visão do mundo e frequentemente o seu pensamento é mágico. Assim, podem deturpar a informação sobre a deficiência ou a doença do irmão, uma vez que o seu sentido de causa-e-efeito é grandemente influenciado pela proximidade dos acontecimentos uns em relação aos outros. Por exemplo, podem pensar que algo que fizeram ou pensaram causou a deficiência, ou podem interpretar as ausências ou a ansiedade dos pais como tendo relação com elas próprias, em vez de entender que são consequências da deficiência do irmão.
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Em conclusão, parece existir de facto uma influência de alguns factores moderadores na capacidade de adaptação dos irmãos de crianças com deficiência. Entre eles, referimos o facto de ter um relacionamento fraterno caloroso e pouco conflituoso; verifica-se uma provável interacção entre o sexo e a posição na fratria, sendo as irmãs mais novas e os irmãos mais velhos os menos perturbados; uma diferença de idade superior a dois ou três anos entre o sujeito e o irmão deficiente protege igualmente contra a perturbação; o nível sócio-económico parece ter apenas uma influência indirecta nesta adaptação; um tamanho da fratria superior a dois irmãos é igualmente protector da perturbação; por último, a gravidade da deficiência parece não ter relação directa com a capacidade de adaptação psicológica da fratria das crianças deficientes. De qualquer forma, esta capacidade de adaptação tem sido sistematicamente analisada e objecto de inúmeros estudos, como se pode verificar na revisão de literatura que efectuámos.Os autores são unânimes em referir que a situação de ter um irmão com deficiência não é indiferente a estas crianças, pelo contrário, provoca-lhes um conjunto de emoções, desejos e necessidades, dos quais tentámos dar uma breve visão.Os sentimentos mais comuns nestas crianças podem ser o ciúme, o ressentimento, a rejeição, a raiva, a revolta, a agressividade, a tristeza, a culpa, a confusão, a preocupação, a solidão, um conjunto de emoções negativas que podem contribuir para a existência de perturbação psicológica.Estas crianças parecem apresentar necessidades específicas pelo facto de terem um irmão com deficiência. Precisam de ser informadas relativamente à deficiência ou doença do irmão; beneficiam com a expressão dos seus sentimentos, junto de pessoas externas à família; necessitam de aprender a aceitar as suas emoções e a desculpabilizá-las; beneficiam em saber lidar com o stress desta situação; e beneficiam em contactar com outras crianças e jovens que estejam na mesma situação, que possam servir de modelos adequados para a implementação de um conjunto de estratégias facilitadoras da adaptação."
A Adaptação Psicológica em Irmãos de Crianças e Jovens com Paralisia Cerebral
Maria Teresa Teixeira Mendes de Mendonça