quinta-feira, novembro 26, 2009

disto e daquilo

estão quase a passar 10 anos sobre o nascimento do pedro, 10 anos desta aventura de criar e habilitar uma criança portadora de deficiência numa sociedade que é, também ela, portadora de múltiplas deficiências. deficiência de solidariedade, deficiência de bom senso, deficiência de respeito pelo outro e pela sua diferença, da capacidade de nos colocarmos no lugar do outro. ao olhar para o caminho percorrido, que é longo, sinuoso e cheio de sobressaltos, não posso deixar de pensar que poderia ter sido mais fácil, se vivêssemos numa sociedade mais solidária e menos individualista. e, já agora, mais organizada. remeti-me ao silêncio neste blog durante muito tempo por duas razões: a primeira, ter-me apercebido que havia pessoas a lê-lo não porque estivessem solidárias connosco ou tivessem curiosidade em relação à temática, mas sim à procura de 'podres' para nos poderem morder as canelas; a segunda, porque foram acontecendo vários episódios mais ou menos surrealistas que seria interessante partilhar, mas não conseguia arranjar maneira de o fazer, sabendo que os tais abutres voavam em círculos aqui por cima. agora, não me interessa mais. leiam, ladrem, mordam, que não me afecta. uma coisa que acontece a quem passa por estas experiências é que o que os outros pensam deixa de ter peso.

muitas vezes ao longo deste precurso tive a percepção de que, em última análise, isto acaba por ser um jogo de egos de adultos, em que a criança que deveria estar no epicentro de tudo é muitas vezes esquecida. a nossa sociedade não tem uma tradição de trabalho multidisciplinar (em que cada um reconhece os limites do seu conhecimento), são todos multiespecialistas, e frequentemente vimo-nos envolvidos em quezílias entre médicos e terapeutas, entre educadores de diferentes instituições, entre nós próprios e os múltiplos profissionais com que o pedro (e nós) tem que lidar. uns utilizam-nos como mensageiros para comunicarem entre si em vez de comunicarem directamente, porque não se gostam apesar de terem que trabalhar em conjunto, outros pensam que os queremos atacar pessoalmente e pôr em questão a sua competência, esquecendo-se que o que nos motiva é só e apenas a habilitação e o sucesso do pedro em todas as frentes. há cerca de um ano entrei em rota de colisão com um desses profissionais por causa de uma questão de pontualidade. entendia esse profissional que o pedro teria que cumprir os horários como todos os outros meninos, ao passo que eu defendia a posição de que o pedro tinha o direito a algum atraso, porque era preferível que ele fizesse as rotinas matinais o mais autonomamente possível e fosse fazendo progressos nessa autonomia, a ser eu a despachá-lo à pressa para sermos pontuais. é verdade que quem não lida com estas situações não tem noção do tempo que uma criança como o pedro pode levar para se vestir, fazer a higiene matinal, descer umas escadas e tomar o pequeno almoço com o maior grau de autonomia que as suas deficiências lhe permite, mas também é verdade que se tem que ter abertura para ouvir o outro. esse profissional decidiu 'disciplinar-nos' e a coisa não correu nada bem. chegou-se ao cúmulo de me ver envolvido em insinuações de que eu era um pai negligente e que o pedro era vítima de maus-tratos, porque o pedro apareceu com nódoas negras e outras marcas, depois de dois fins-de-semana consecutivos. este foi um dos episódios surrealistas. as crianças caem, as crianças como o pedro caem muito mais, principalmente se não os tratarmos como peças de porcelana. e eu nunca tratei o pedro como uma peça de porcelana.

e no meio destas confusões, o pedro vai crescendo. despreocupado, como todas as crianças devem ser. continua a ser um rapaz feliz e confiante, está numa fase de progressos, a epilepsia está razoavelmente bem controlada desde o início do verão. depois de mais de um ano em ajustes de doses e de combinação de antiepilépticos, parece que se encontrou um esquema terapêutico eficaz, embora de vez em quando lá apareça uma hipotonia. mas fiquemos por aqui, a conversa não se põe em dia de uma vez só. e confesso que tinha saudades de escrever aqui.