uma ida ao supermercado
as idas ao supermercado com o pedro são actualmente verdadeiros concentrados de experiências. para ele e para mim. primeiro a autonomia, o pedro começa a querer fazer tudo o que consegue sozinho. deixado o carro no piso inferior do centro comercial, para subir ao piso do supermercado há que utilizar a passadeira rolante. mal entramos no hall, larga-me a mão e prepara-se para abordar a dita passadeira. no entanto pára, maravilhado com as iluminações de natal instaladas nos últimos dias. repara em todos os enfeites, aponta-os um a um, e eu faço-lhe os gestos correspondentes: luzes, bolas, árvore de natal, mais bolas aqui, mais luzes ali, mais árvores acolá. decide-se então a abordar a passadeira. não é fácil, mas ele já vai dominando a técnica de entrar com a passadeira em movimento, agarrando-se ao corrimão móvel, equilibrar-se no plano inclinado e preparar a saída. consegue tudo com exito, comigo sempre preparado para o agarrar se alguma coisa correr mal. maravilha-se com todos os enfeites, a cara iluminada por um daqueles sorrisos de fascínio que dá gosto ver, observa demoradamente as pequenas árvores colocadas nas separações entre lojas e repete os gestos correspondentes: luzes, bolas, árvores, natal. tiramos um carrinho e ele declara logo que quem o empurra é ele. ao avançarmos pelos corredores, só me permite pequenas correcções de rota, porque ter a mão sempre no carrinho, nem pensar. é ele que vai a pilotar. ajuda-me a colocar as compras no carrinho, escolhe as suas coisas preferidas. passo por debaixo de um cartaz colocado numa posição baixa e toco-lhe com a cabeça. todos os cartazes que se seguem, tenta tocar-lhes com as mãos, mas estão muito altos. só no corredor seguinte encontramos um cartaz suficientemente baixo para ele o alcançar, sobressaindo das estantes. corre para ele, com o seu passo atabalhoado, e passa por debaixo várias vezes, tocando-lhe, saciando a sua vontade de criança. faz-me o gesto com a mão fechada e o polegar esticado para cima, que toda a gente conhece, surdos ou ouvintes. os cartazes seguintes já não o interessam, o desafio já tinha sido vencido. mais à frente decide que já posso ser eu a conduzir o carrinho. fica um bocado para trás, entretido com um expositor. eu vou avançando e, quando me viro para trás, vejo-o a passar entre dois carrinhos que estão parados, deixando espaço para apenas uma pessoa passar de cada vez. dois jovens apressados forçam a passagem em sentido contrário e acabam por fazê-lo cair, sem sequer olhar para trás ou parar para o auxiliar. quando chego ao pé dele, já um senhor de olhar bondoso o tinha levantado. chora ofendido e volta-se para trás zangado, mas quem o fez cair já desapareceu no meio dos corredores. enquanto estamos à espera de ser atendidos na charcutaria, chegam os dois jovens (um casal, provavelmente irmãos), que não me tinham chegado a ver, e ela ao ver o pedro deixa sair um "o quê? já estás aqui?", com ar de desdém, ao que eu respondo "olha os imbecis outra vez". percebem então que o pedro está comigo, e não se atrevem a responder. ainda bem, porque eu estava preparado para lhes dar uma pequena lição de moral em público. enquanto somos atendidos, o pedro crava 3 fatias de queijo às simpáticas funcionárias da charcutaria. devora-as uma atrás da outra, já faz parte dos rituais de supermercado. obrigo-o a fazer o gesto de obrigado. na secção da fruta, engraça com as uvas, vai buscar um saco, e é ele que as escolhe e as coloca dentro do saco que eu seguro. decide também que é ele que as leva à balança para a funcionária as pesar. mais uma missão cumprida com exito. na fila para a caixa, pede-me para fazer xixi. como as casas de banho são mesmo ao pé do supermercado, deixamos o carrinho a um canto e saimos. ao chegarmos às casas de banho, a reservada a deficientes está de porta fechada e a das senhoras está em limpeza, com a indicação para utilizar as do piso de cima. dirijo-me às dos homens, mas estão sujas. decido-me voltar para trás para uma nova abordagem à dos deficientes. chegamos no momento em que a porta se abre e de lá de dentro sai uma senhora sem qualquer sinal de deficiência. deixo escapar um irónico "ah, mas que bem!". a senhora, que não quis dar-se ao trabalho de subir ao piso superior, prepara-se para me responder, irritada, quando repara no pedro. o registo muda automaticamente para um pedido de desculpas envergonhado. quando saimos da casa de banho, vejo um senhor com ar de importante a dirigir-se às casas de banho dos homens, que entretando tinham entrado em manutenção. repara na placa que solicita a utilização das do piso superior, olha para as escadas com enfado e entra, acto contínuo, na reservada a deficientes. preparo-me para lhe fazer um reparo, mas decido que é desperdício de energias. regressamos ao supermercado, para a fila da caixa. o pedro repara nos expositores dos carrinhos hot wheels, estrategicamente colacados junto às caixas, junto a chão. escolhe 3, eu digo-lhe que só pode levar um. fica indeciso, mas lá escolhe um vermelho com umas "chamas" pintadas a branco. digo-lhe para colocar os outros de volta no expositor. atrapalha-se ao colocá-los, irrita-se ao fim de algumas tentativas, porque eles caem sempre. com paciência, decido intervir e ensino-lhe a "mecânica da coisa". consegue. satisfeito, repete a operação várias vezes. tira e volta a colocar. entretanto chega a nossa vez na caixa. ajuda-me a colocar as compras na passadeira rolante da caixa e depois ajuda a operadora de caixa, passando-lhe alguns itens para a mão. quando acaba a nossa conta, quer continuar a ajudar a operadora, com as compras dos outros clientes. as pessoas da fila, que o tinham estado a observar, riem-se com gosto e ternura. digo-lhe que nos vamos embora, e ele vem, alegremente, fazendo adeus à senhora da caixa. é o que eu dizia no início do post: um concentrado de experiências. umas boas, outras más.
6 comentários:
As experiências ajudam todas ao desenvolvimento do Pedro, as más experiências custam sempre... e é claro que as lamentamos mas também trazem algo de positivo (penso eu) pois podem ajudar o Pedro a aprender a lidar com as adversidades, certo?
certamente, cristina. aprender a lidar com a maldade (a dos outros e a nossa), faz parte do processo de crescimento. o desprezo é que é mais difícil de aceitar. de certa maneira, agrada-me a pureza que o pedro tem, mas preocupa-me o que ele terá que enfrentar no futuro. e é mais que evidente que vai ter que lidar com muita gente sem interesse e sem inteligência.
Pai do Pedro: Grande concentrado de experiências, sem dúvida.
A crueldade do mundo não afecta só as crianças com deficiência, mas as pessoas em geral. Essas estão obviamente mais expostas, mas o remédio é o mesmo e custa-nos MUITO, MUITO, MUITO...
Deixar acontecer o que acaba por acontecer e tentar dar o nosso melhor para o preparo psicológico para poder enfrentar estas adversidades. Julgo que seja assim...pelo menos a teoria. A prática é que iremos ver. É de certeza bem mais difícil...
Um grande beijinho e desejos de muitas e continuadas experiências.
é lógico que o episódio com os dois jovens é o que resalta mais aqui, mas gostava de "ouvir" comentários sobre a questão da utilização sistemática das casas de banho reservadas a deficientes por outras pessoas, apenas por comodismo... ou é um fenómeno local?
As pessoas não respeitam as casas de banho para deficiêntes, como não respeitam os estacionamentos, caixas de pagamento etc. É triste, é falta de civismo/cidadania, não sei porquê. Hoje em dia é um dos temas que éw trabalho na escola nas áreas curriculares não disciplinares. Aproveito para contar um episódio quando o meu filho mais velho tinha dois anos. Depois de me perguntar o que significava o sinal de deficientes no chão do estacionamento do hipermercado ele percebeu muito bem. Logo de seguida uma senhora que não era deficiente ocupava esse mesmo lugar e entramos simultanemanente pela porta do hipermercado e ele disse-me muito consternado, mãe deixa a senhora passar porque é deficiente! Não viste aonde estacionou o carro. A senhora não percebeu a inocência da criança e nem conto o desfecho deste episódio! Um abraço. Lina
É verdade, eu trabalho num hospital e frequentemente vejo pessoas (que também trabalham no hospital) a fumar no elevador que por acaso também transporta doentes… nunca me calo... apesar de saber que continuarão a fazer sempre isso e apesar de muitas vezes apanhar com respostas tortas. Nos supermercados também levanto discussões pois não me calo ao ver comodistas a estacionar nos locais de deficientes, geralmente vou lá e pergunto “Qual é a sua deficiência?”, claro que a pergunta não é bem aceite e perguntam-me logo o que é que eu tenho a ver com isso… mas a solução é (penso eu) sermos chatos, muito chatos. A minha filha com 4 anos num espectáculo no coliseu foi dizer a um homem que fumava perto de um letreiro que tinha o símbolo de proibido fumar que era "sumitivo" fumar e que ele estava a por cinza na cabeça dos meninos, deixei que ela fizesse isso e elogiei a sua atitude, por acaso a pessoa reagiu bem e apagou o cigarro mas se não o tivesse feito eu teria ido defender a minha filha pois penso que a solução deste problema passa por sairmos da passividade, tornarmo-nos chatos e ensinarmos os nossos filhos a serem chatos e porque não a ensinarem regras de civismo aos adultos.
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